Entrevista: Fernanda Freire

Começamos, em 2015, a realizar entrevistas com os pesquisadores e colaboradores do NIED. Abaixo, você confere a primeira entrevista realizada com a pesquisadora Fernanda Freire.

Fernanda Freire, pesquisadora do NIED desde 1987, articula suas áreas de formação – fonoaudiologia, linguística e informática na educação – nas linhas de pesquisa que desenvolve: Informática na Educação, Neurolinguística Discursiva, Educação à Distância, Linguagens e Tecnologias. Formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCamp) em Fonoaudiologia, fez mestrado (1999) e doutorado (2005) em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL); pós-doutorado (2009) no Instituto de Computação (IC) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desde 2008 é professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Linguística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
 

Como você começou a trabalhar no campo da tecnologia e educação?

Sou fonoaudióloga de formação. Na época em que me formei, fazia um estágio com crianças surdas aqui na UNICAMP, no Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S. Porto” (Cepre), na área de estimulação precoce, como se denominava na época. Lá comecei a trabalhar com uma pedagoga, Cleide Galhardi, que atuava com crianças maiores, com conteúdos escolares. Havia algumas questões das crianças, quando elas cresciam, que me instigavam, relacionadas à aquisição da linguagem. Naquela época, o método de reabilitação utilizado era o Oralismo puro; pouco se falava na Comunicação Total e muito menos em Língua de Sinais. Usávamos um método conhecido como Verbotonal. O trabalho da fonoaudióloga era feito em cabines acústicas com auxílio de um grande aparelho que era calibrado em função da curva audiométrica da criança. Com os fones, desenvolvíamos atividades de fala, um trabalho árduo para crianças surdas de pouca idade.

Eu realizava esse trabalho quando o Prof.º José Armado Valente, que havia voltado do MIT (Massachussetts Institute of Technology), onde ele havia feito o seu doutorado com sujeitos com paralisia cerebral, foi fazer uma palestra no CEPRE. Ele estava retomando as atividades na universidade e, naturalmente, um dos lugares que possíveis para a implantação de um projeto de pesquisa sobre o uso da informática, era o CEPRE.  Eu nunca havia visto um computador; era final dos 80, começo dos 90, então. O computador era um Itautec i7000 júnior. Ele apresentou a linguagem Logo e o trabalho que ele tinha feito com as pessoas com paralisia cerebral. Sua ideia era implantar algo similar com o que, na época, denominávamos de deficientes  auditivos e crianças com Síndrome de Down. Os profissionais do CEPRE interessados se candidataram a uma seleção para participar de um projeto financiado pela Embratel. Fui selecionada e passei a integrar a equipe do projeto junto com outros profissionais. Passamos por uma preparação que incluía aprender a programação Logo, ler e discutior textos, usar o Logo com crianças surdas, registrar os encontros, analisar os dados, etc. Aprendemos o Logo de modo bem piagetiano: tínhamos que descobrir o quê e como fazer, descrever nossas hipóteses, inferir o que os comandos faziam. A razão pela qual eu me interessei pelo projeto é porque havia uma discussão acalorada a respeito do papel da linguagem em relação aos demais processos cognitivos: se o pensamento precedia a linguagem ou se a linguagem organizava o pensamento. Um programa em Logo era concebido como uma “janela para a mente”, uma maneira de se compreender o raciocínio daquela criança que, impedida de falar como um ouvinte, não conseguia dizer o que queria. E o Logo talvez pudesse ajudar nesse processo.

Foi a partir desse debate entre as ideias piagetianas e vygotskyanas que decidi fazer o mestrado na Linguística, no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Durante o curso, tive a oportunidade de conhecer o trabalho da Profa Maria Irma Hadler Coudry com sujeitos afásicos, pessoas que sofreram algum dano cerebral em áreas responsáveis pela linguagem devido a algum  episódio neurológico (traumatismo craniano, Acidente Vascular Cerebral, tumor, etc). O principal sintoma que apresentam  é uma dificuldade importante de linguagem, heterogênea, porque pode  se manifestar em cada caso clínico de diferentes maneiras. Há várias classificações de afasia, mas grosso modo, é uma perda da linguagem falada e/ou escrita/ leitura que pode estar associada a outras dificuldades cognitivas (espaço, cálculo, etc.) Acabei fazendo a minha dissertação na área de Neurolinguística, usando a linguagem Logo como protocolo de avaliação de um caso de afasia semântica, e que, do ponto de vista teórico, fiz uma reinterpretação dos pressupostos de Papert, criador do Logo, à luz da teoria de Vygotsky e de uma concepção abrangente de linguagem, desenvolvida pelo Prof. Carlos Franchi e incorporada pelos estudos neurolinguísticos desenvolvidos pela Profa Coudry..

Assim, fiz uma escolha teórica, a Neurolinguística Discursiva, a partir da qual passei a ver também o trabalho clínico e educacional baseado no uso de tecnologias. Foi interessante porque eu demorei muito tempo para fazer o mestrado; demorei dez anos. Eu tinha os dados do afásico, mas as coisas não se encaixavam na minha análise do ponto de vista teórico. Eu tive que passar po uma reviravolta teórica para conseguir ver e poder falar a respeito do que via.

Paralelamente ao mestrado, continuei atuando no Projeto de Informática na Educação Especial, como era chamado, que depois da Embrate, foi financiado pela Itautec. Pouco tempo depois, o Prof. Valente assumiu a coordenação do NIED e me convidou para compor a equipe. Fui, então, transferida do CEPRE para o NIED. Em paralelo fiz o mestrado e o doutorado na Linguística, na área de Neurolinguística, no Instituto de Estudos da Linguagem, atuando com sujeitos cérebros lesados ou com crianças que apresentam dificuldades na fala, na leitura e na escrita.

No IEL existe um projeto de pesquisa coordenado pela Profa. Maria Irma Hadler Coudry, desde os anos 90, financiado pelo CNPQ. A cada dois anos tem uma temática resultante do movimento teórico da área  Um braço desse projeto é o uso de tecnologia. À época que apresentei a minha proposta de mestrado, no final dos anos 80, o uso da tecnologia ainda era bastante restrito, diferente de hoje em que é um instrumento de trabalho para todo mundo. A Neurolinguística concebe a tecnologia como uma ferramenta que pode fazer uma mediação – que eu denomino de mediação coadjuvante – importante no exercício da linguagem, seja na fala, na leitura ou na escrita. O que procuramos fazer no nosso trabalho, que tem um caráter, digamos clínico-educacional, é retirar da tecnologia o que ela pode contribuir para aquele quadro clínico específico que o sujeito apresenta. Por exemplo, uma das crianças que acompanhei durante vários anos, apresentava dificuldades relacionadas à leitura e à escrita. Foi usando o computador que a percebemos que a sua dificuldade não estava na relação som/letra, o que é comum para iniciantes nas letras, mas ela tinha uma questão anterior, que era a representação gráfica das letras. Isto é, perceber que uma mesma letra pode ser representada de diferentes formas  Ela não conseguia abstrair que, de diferentes tipos de traçados, existia sempre uma unidade que se referia a uma determinada letra. Certa vez ele estranhou a forma da letra “i” com uma determinada fonte e disse: “nossa parece o “l” de ponta cabeça”. Essa fala foi o fio da meada do acompanhamento clínico. Começamos a intervir nessa questão. Veja, se as letras não tinham estabilidade na sua representação ele não conseguia relacioná-las aos some, consequentemente, não conseguia chegar no sentido da escrita: nem no que ele lia nem do que escrevia.

Quais são as suas principais inquietações sobre a área de tecnologia e educação hoje?

Várias, mas algumas me preocupam mais. Uma delas é que para você fazer coisas interessantes com a tecnologia hoje eu acho que você tem, ao contrário do que se pensa, pelo menos esse é o meu ponto de vista, que saber cada vez mais sobre tecnologia porque as coisas não se “conversam”. Por exemplo, você quer fazer uma gravação depois dessa gravação, você quer fazer um vídeo com a criança, depois você quer que ela faça as legendas, que ela mesma ouça o que disse e faça a transcrição da sua fala. São atividades interessantes do ponto de vista linguístico, mas que dão uma trabalheira tremenda porque o programa com o qual você gravou não conversa com o programa do seu celular, que depois não roda não sei onde. Isso eu acho que é um problema, não vejo nenhuma iniciativa de fazer um “kit conversável”. A tecnologia evoluiu muito, melhorou muito, mas acho que a complexidade para o usuário final não especialista também aumentou muito e eu acho que isso á uma barreira para fazer coisas realmente interessantes. Deveria ser muito fácil editar um vídeo, deveria ser muito fácil editar um áudio, deveria ser muito fácil inserir legendas em um vídeo. Isso deveria simples e, eventualmente, quando você encontra algo simples, a qualidade não é tão boa.

Outra inquietação é “naturalizar” demais o computador, isto é, usá-lo para fazer coisas que não ele não tem um papel diferenciado, próprio. Acho que o educador deveria sempre pensar assim: que diferença faz eu usar a tecnologia para isso? Eu acho que tem que dar um atribuir uma função diferente e para isso tem que ter um bom planejamento e não sei se há. Eu estou um pouco distante da escola e por isso posso estar falando uma coisa que não acontece em todo lugar, eu não quero generalizar, mas vejo uma tendência, inclusive nas escolas mais tradicionais, de adoção de sistemas de ensino e dentro desse sistema o uso de tecnologia já está previsto. E o que eu acho bacana de um bom planejamento pedagógico de uso de tecnologia é, exatamente, lidar com o inesperado que pode acontecer porque é esse acontecimento que pode fazer diferença. Não acho isso muito criativo e, mesmo os alunos, também não acham. Tem um dado que eu apresentei uma vez que mostra o twit de um pré-adolescente que diz: “nossa, que interessante, agora nossa escola está no facebook porque que eles não mudam o jeito de dar aula que tem mais de cem anos. Agora tá na rede social!” Então acho que os alunos sacam o que é modismo e o que é realmente uma inovação.
 

Descreva um projeto no qual você trabalha, que mais lhe motiva hoje?

Não tenho um projeto grande meu, tenho vários projetos, várias iniciativas, eu gosto muito de trabalhar com pessoas, gosto de trabalhar em grupo, acho que eu produzo mais. Por exemplo, esse projeto do IEL em que eu acompanho essa criança me motiva muito, eu descubro coisas sobre a tecnologia porque as crianças veem coisas na tecnologia que eu não havia visto.

Depois do doutorado você continua acompanhando a criança?

Continuo participando do Projeto Integrado e sou credenciada como professora colaboradora na Pós-graduação em Linguística no IEL. Atualmente estou coorientando uma dissertação de uma aluna, Alline Kobayashi, que conheci no NIED, graduada em Ciência da Computação. Ela foi nossa estagiária no Projeto TelEduc. Ela sabia do meu trabalho com no IEL e se interessou porque tem um primo com paralisia cerebral e já tentou usar tecnologia com ele. Ela tem muita sensibilidade em relação a questões de linguagem. Ela está fazendo mestrado na área de Neurolinguística; deu uma reviravolta na vida dela.

Eu gosto muito dos estudos de IHC também, área em fiz meu pós-doc com a Prof Heloisa Vieira da Rocha, do Instituto de Computação. Gosto de pensar na interface como uma “proposta de compreensão”. Na interação com o computador há dois níveis relacionados entre si: o do sujeito com o computador e do sujeito com o outro. O computador compreende uma parte física (mouse, tela, teclado, etc) e uma  parte simbólica, representada tanto pela interface da aplicação quanto pela natureza da tarefa que o sujeito está fazendo. O outro pode estar fisicamente presente, como no caso do acompanhamento clínico-educacional, por exemplo; pode estar distante, como no caso das ferramentas de comunicação mediadas pelo computador ou, ainda, pode estar representado, como no caso de se escrever um texto em que se pressupõe um leitor.

Quem você considera suas 5 principais referências (pessoas, artigos, livros, lugares) no que tange tecnologia e educação?

Vou citar três pessoas pela importância que tiveram na minha trajetória profissional na área de Informática na Educação. O Prof. Valente, por ter me introduzido na área de Informática na Educação, abrindo novas perspectivas para mim: novas . A Profa Heloisa Vieira da Rocha é outra pessoa, pela maneira como me introduziu na área de computação, aprendi com ela  a programação avançada em Logo de uma maneira muito intuitiva. ao participação no Projeto TelEduc também me ensinou muito sobre metodologias e tecnologias para EaD. E, finalmente, a Profa Maria Irma Hadler Coudry, por ter me introduzido aos estudos da linguagem, provocando uma reflexão sobre o uso de tecnologias a partir dessa perspectiva teórica.

Vou escolher mais três autores da velha guarda. Agora, eu acho que o Papert é uma referência interessantíssima, acho que ele é um visionário no melhor sentido da palavra; A Edith Ackermann eu gosto demais, ela é uma psicóloga que trabalhou com o Piaget e com o Papert, gosto muito da abordagem dela, por ser eclética e fazer articulações teóricas interessantes. e a Sherry Turkle, pelo fato de ela ter se dedicado às questões afetivas em uma época em que o computador era quase uma máquina da solidão e acho que ela viu muitas outras coisas que ainda ninguém via.

Qual o projeto de (pesquisa, ensino ou extensão) que você ainda não conseguiu realizar e gostaria de ver sair do chão?

Eu gostaria de ter um caminhão do tipo “Bye, Bye Brasil![1]” cheio de tecnologia para percorrer a rua, parecido com um projeto do pessoal do Museu de Ciências, que não sei se ainda está ativo. Eu acho que seria muito interessante se tivesse um “Bye, Bye Brasil!” com tecnologia, que pudesse ser levado às  escolas,  museus,  praças para as crianças produzirem vídeos, , programarem, desenvolverem games, etc.


[1] Bye Bye Brasil é um filme brasileiro de 1979 dirigido por Carlos Diegues, que conta a história de artistas mambembes que cruzam o país com a Caravana Rolidei (um caminhão adaptado) e  faziam espetáculos para comunidades humildes brasileiras e que não tinham acesso à televisão.

Entrevista realizada por Mariana Martinelli de Barros Lima, bolsista SAE – NIED/UNICAMP.